A
primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como
herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da
estaca zero
Rubem Alves, educador, escreveu, entre outros,
Livro sem Fim (Edições ASA), publicado em Portugal, e Seu Eu Pudesse
Viver Minha Vida Novamente (Verus). Site: www.rubemalves.com.br. Artigo
publicado no caderno Sinapse da Folha de SP:
Resumindo: são
duas, apenas duas, as tarefas da educação. Como acho que as explicações
conceituais são difíceis de aprender e fáceis de esquecer, eu caminho
sempre pelo caminho dos poetas, que é o caminho das imagens. Uma boa
imagem é inesquecível. Assim, em vez explicar o que disse, vou mostrar o
que disse por meio de uma imagem.
O corpo carrega duas caixas.
Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de
ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de
brinquedos. Ferramentas são melhorias do corpo. Os animais não precisam
de ferramentas porque seus corpos já são ferramentas. Eles lhes dão tudo
aquilo de que necessitam para sobreviver.
Como são desajeitados
os seres humanos quando comparados com os animais! Veja, por exemplo,
os macacos. Sem nenhum treinamento especial eles tirariam medalhas de
ouro na ginástica olímpica. E os saltos das pulgas e dos gafanhotos!
Já
prestou atenção na velocidade das formigas? Mais velozes a pé,
proporcionalmente, que os bólidos de F-1! O vôo dos urubus, os buracos
dos tatus, as teias das aranhas, as conchas dos moluscos, a língua
saltadora dos sapos, o veneno das taturanas, os dentes dos castores.
Nossa
inteligência se desenvolveu para compensar nossa incompetência
corporal. Inventou melhorias para o corpo: porretes, pilões, facas,
flechas, redes, barcos, jegues, bicicletas, casas... Disse Marshall
MacLuhan corretamente que todos os meios são extensões do corpo. É
isso que são as ferramentas, meios para viver.
Ferramentas
aumentam a nossa força, nos dão poder. Sem ser dotado de força de corpo,
pela inteligência o homem se transformou no mais forte de todos os
animais, o mais terrível, o maior criador, o mais destruidor. O homem
tem poder para transformar o mundo num paraíso ou num deserto.
A
primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como
herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da
estaca zero.
Para que eles não precisem pensar soluções que já
existem. Muitas ferramentas são objetos: sapatos, escovas, facas,
canetas, óculos, carros, computadores.
Os pais apresentam tais
ferramentas aos seus filhos e lhes ensinam como devem ser usadas. Com o
passar do tempo, muitas ferramentas, muitos objetos e muitos de seus
usos se tornam obsoletos.
Quando isso acontece, eles são retirados da caixa. São esquecidos por não terem mais uso.
As
meninas não têm de aprender a torrar café numa panela de ferro, e os
meninos não têm de aprender a usar arco-e-flecha para encontrar o café
da manhã. Somente os velhos ainda sabem apontar os lápis com um
canivete...
Outras ferramentas são puras habilidades. Andar,
falar, construir. Uma habilidade extraordinária que usamos o tempo todo,
mas de que não temos consciência, é a capacidade de construir, na
cabeça, as realidades virtuais chamadas mapas.
Para nos
entendermos na nossa casa, temos de ter mapas dos seus cômodos e mapas
dos lugares onde as coisas estão guardadas. Fazemos mapas da casa.
Fazemos mapas da cidade, do mundo, do universo. Sem mapas, seríamos
seres perdidos, sem direção.
A ciência é, ao mesmo tempo, uma
enorme caixa de ferramentas e, mais importante que suas ferramentas, um
saber de como se fazem as ferramentas. O uso das ferramentas científicas
que já existem pode ser ensinado. Mas a arte de construir ferramentas
novas, para isso há de saber pensar.
A arte de pensar é a ponte
para o desconhecido. Assim, tão importante quanto a aprendizagem do uso
das ferramentas existentes coisa que se pode aprender mecanicamente é
a arte de construir ferramentas novas.
Na caixa das ferramentas, ao lado das ferramentas existentes, mas num compartimento separado, está a arte de pensar.
(Fico a pensar: o que as escolas ensinam? Elas ensinam as ferramentas
existentes ou a arte de pensar, chave para as ferramentas inexistentes? O
problema: os processos de avaliação sabem como testar o conhecimento
das ferramentas. Mas que procedimentos adotar para avaliar a arte de
pensar?)
Assim, diante da caixa de ferramentas, o professor tem
de se perguntar: Isso que estou ensinando é ferramenta para quê? De que
forma pode ser usado? Em que aumenta a competência dos meus alunos para
cada um viver a sua vida?. Se não houver resposta, pode estar certo de
uma coisa: ferramenta não é.
Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração. Essa caixa está cheia de coisas que não servem para nada. Inúteis.
Lá
estão um livro de poemas da Cecília Meireles, a Valsinha de Chico
Buarque, um cheiro de jasmim, um quadro de Monet, um vento no rosto, uma
sonata de Mozart, o riso de uma criança, um saco de bolas de gude...
Coisas inúteis.
E, no entanto, elas nos fazem sorrir. E não é
para isso que se educa? Para que nossos filhos saibam sorrir? Na próxima
vez, a gente abre a caixa dos brinquedos...
(Folha de SP, 29/6) FONTE: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.php?id=19707 | |
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